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quinta-feira, 27 de junho de 2013

UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRAR



UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRAR

Cárita Santos Oliveira
Extraído do Jornal O Popular (Goiânia-GO), Encarte CAMPO, 08 a 14 de março 2013.

Era o ano de 1965 na Fazenda Rosário, interior do Estado de Goiás. Terra a perder de vista, de propriedade de Tonico Leme, casado pela segunda vez com Ana das Dores e pai de seis filhos, dois do primeiro casamento com Isabel Maria e os outros quatro de Ana das Dores.

Tonico Leme era do tipo durão mas muito religioso, devoto de Nossa Senhora. Daí o nome de seu rincão. Durante todo o ano, nos dias santos dedicados à Mãe do Céu, em sua casa rezava-se o terço com a participação da vizinhança, que era sempre convidada.

O comentário é que Tonico ficara assim, fechadão, depois da morte da primeira esposa, dando à luz o segundo filho. Nem o casamento com Ana e o nascimento de seus quatro filhos conseguiram fazer com que sorrisse como antes.

Acreditava-se que Isabel era exímia amazona e ajudava o marido na lida com o gado. E continuava, mesmo após a morte, a proteger os animais da fazenda e as pessoas que ali viviam. Era comum ouvir alguém dizer que invocara a ajuda de Dona Isabel e fora atendido.

Naqueles dias do mês de setembro apareceu na fazenda um peão, sujeito mestiço, mais parecendo índio, montado em um cavalo preto, portando um rifle, procurando emprego de vaqueiro. Disse vir de Mato Grosso a fim de conhecer outras paragens.

Tonico Leme recebeu o rapaz na varanda e, conversa vai, conversa vem, o caboclo disse ao fazendeiro não ter medo de serviço nem de nada. Que respeitava as pessoas e gostava dos animais, mas era ateu, só acreditava no que via.

O pecuarista ficou cismado, mas como precisava de um braço forte, resolveu fazer  uma experiência. Propôs ao peão um trabalho temporário, enquanto a ordenha se intensificava. O mestiço deu o nome de Sebastião, mas disse preferir ser chamado de Guará.

Guará era o primeiro a levantar, na madrugada, bem antes do sol, e a se lançar no trabalho, sempre bem disposto, alegre e prestativo. Mas, quando o sino da Fazenda tocava as dezoito badaladas e todos os peões tiravam o chapéu, fazendo o sinal da cruz, Guará se esquivava para um canto com seu ar incrédulo. Quando passavam em frente à capela e se benziam, ele seguia com um sorriso zombeteiro.

Muitas vezes, as pessoas se esqueciam e diziam “Vá com Deus!” O peão, de pronto,  respondia:
- Eu me garanto. Não se preocupem!

Assim seguia a vida na Fazenda Rosário. Todos olhavam com receio as atitudes do peão em relação ao sagrado, mas torciam pela sua permanência no trabalho, pois era um bom companheiro e um “pé de boi” no serviço.

Sempre que uma rês ficava de arribada, Guará fazia questão de campeá-la sozinho, levando seu rifle de cancã, o qual, dizia ele, era infalível em suas mãos.

Um belo dia, ao cair da tarde, deram pela falta da Malhada (vaca de estimação do patrão), que estava prestes a parir, correndo assim o risco de perder a cria para a jaguatirica ou mesmo para a onça-pintada que rondavam o pasto ao pé da serra.

Guará prontamente montou seu Corisco levando a arma carregada, muita munição e um facão. Partiu em missão de salvação à rês, fiel a seu patrão, ao qual fazia questão de demonstrar gratidão.

No céu se formavam pesadas nuvens escuras, anunciando grande temporal. O peão amarrou o chapéu, colou na sela e saiu voando pelo pasto, rumo ao espinheiro onde as vacas costumavam esconder as crias.

Ao passar a porteira velha, viu saltar-lhe à frente uma onça-pintada. Corisco relinchou e ficou nas patas traseiras. Guará não se abalou. Em fração de segundos engatilhou o rifle e disparou.

Nenhum tiro. Tentou novamente. Em vão. Procurou o facão, mas este havia caído, sem que ele pudesse entender como.

Naquele instante só viu o salto do felino na sua direção. Guará sentiu-se perdido e gritou:
- Valha-me, Nosso Senhor Jesus Cristo!! Me mande Dona Isabel!

No mesmo instante, viu surgir um cavaleiro feito de luz, que atravessou bem na sua frente. Corisco ficou imóvel e em silêncio, enquanto a pintada fugia em disparada, rumo à serra. Guará, então, pulou da sela, sem saber o motivo. A visão já havia se desfeito.

O peão tirou o chapéu, se ajoelhou e, mesmo sem saber, tentou fazer o sinal da cruz.

De volta à sela, pouco mais à frente avistou Malhada e sua cria. Já começavam a cair grossos pingos de chuva e o céu era riscado por relâmpagos intermitentes e os trovões pareciam sacudir a terra.

Guará pegou a bezerrinha, a envolveu em sua capa de peão e seguiu os passos lentos rumo ao curral, acompanhado da Malhada.

Chegando debaixo de pesado temporal, colocou a mãe e a cria no galpão e entrou na varanda, procurando pela patrão.

Tonico Leme, mesmo sem entender a urgência, foi logo perguntando:

- O que é isso, peão? Vá tirar essa roupa molhada!

Ao que Guará respondeu, tirando o chapéu:

- Patrão, por Nosso Senhor Jesus Cristo! Eu preciso lhe contar o vi há pouco lá na porteira velha!


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