UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRAR
Cárita
Santos Oliveira
Extraído
do Jornal O Popular (Goiânia-GO), Encarte CAMPO, 08 a 14 de março 2013.
Era o ano
de 1965 na Fazenda Rosário, interior do Estado de Goiás. Terra a perder de
vista, de propriedade de Tonico Leme, casado pela segunda vez com Ana das Dores
e pai de seis filhos, dois do primeiro casamento com Isabel Maria e os outros
quatro de Ana das Dores.
Tonico
Leme era do tipo durão mas muito religioso, devoto de Nossa Senhora. Daí o nome
de seu rincão. Durante todo o ano, nos dias santos dedicados à Mãe do Céu, em
sua casa rezava-se o terço com a participação da vizinhança, que era sempre
convidada.
O
comentário é que Tonico ficara assim, fechadão, depois da morte da primeira
esposa, dando à luz o segundo filho. Nem o casamento com Ana e o nascimento de
seus quatro filhos conseguiram fazer com que sorrisse como antes.
Acreditava-se
que Isabel era exímia amazona e ajudava o marido na lida com o gado. E
continuava, mesmo após a morte, a proteger os animais da fazenda e as pessoas
que ali viviam. Era comum ouvir alguém dizer que invocara a ajuda de Dona
Isabel e fora atendido.
Naqueles
dias do mês de setembro apareceu na fazenda um peão, sujeito mestiço, mais
parecendo índio, montado em um cavalo preto, portando um rifle, procurando
emprego de vaqueiro. Disse vir de Mato Grosso a fim de conhecer outras
paragens.
Tonico
Leme recebeu o rapaz na varanda e, conversa vai, conversa vem, o caboclo disse
ao fazendeiro não ter medo de serviço nem de nada. Que respeitava as pessoas e
gostava dos animais, mas era ateu, só acreditava no que via.
O
pecuarista ficou cismado, mas como precisava de um braço forte, resolveu
fazer uma experiência. Propôs ao peão
um trabalho temporário, enquanto a ordenha se intensificava. O mestiço deu o
nome de Sebastião, mas disse preferir ser chamado de Guará.
Guará era
o primeiro a levantar, na madrugada, bem antes do sol, e a se lançar no
trabalho, sempre bem disposto, alegre e prestativo. Mas, quando o sino da
Fazenda tocava as dezoito badaladas e todos os peões tiravam o chapéu, fazendo
o sinal da cruz, Guará se esquivava para um canto com seu ar incrédulo. Quando
passavam em frente à capela e se benziam, ele seguia com um sorriso zombeteiro.
Muitas
vezes, as pessoas se esqueciam e diziam “Vá com Deus!” O peão, de pronto, respondia:
- Eu me
garanto. Não se preocupem!
Assim
seguia a vida na Fazenda Rosário. Todos olhavam com receio as atitudes do peão
em relação ao sagrado, mas torciam pela sua permanência no trabalho, pois era
um bom companheiro e um “pé de boi” no serviço.
Sempre
que uma rês ficava de arribada, Guará fazia questão de campeá-la sozinho,
levando seu rifle de cancã, o qual, dizia ele, era infalível em suas mãos.
Um belo
dia, ao cair da tarde, deram pela falta da Malhada (vaca de estimação do
patrão), que estava prestes a parir, correndo assim o risco de perder a cria
para a jaguatirica ou mesmo para a onça-pintada que rondavam o pasto ao pé da
serra.
Guará
prontamente montou seu Corisco levando a arma carregada, muita munição e um
facão. Partiu em missão de salvação à rês, fiel a seu patrão, ao qual fazia
questão de demonstrar gratidão.
No céu se
formavam pesadas nuvens escuras, anunciando grande temporal. O peão amarrou o
chapéu, colou na sela e saiu voando pelo pasto, rumo ao espinheiro onde as
vacas costumavam esconder as crias.
Ao passar
a porteira velha, viu saltar-lhe à frente uma onça-pintada. Corisco relinchou e
ficou nas patas traseiras. Guará não se abalou. Em fração de segundos
engatilhou o rifle e disparou.
Nenhum
tiro. Tentou novamente. Em vão. Procurou o facão, mas este havia caído, sem que
ele pudesse entender como.
Naquele
instante só viu o salto do felino na sua direção. Guará sentiu-se perdido e
gritou:
-
Valha-me, Nosso Senhor Jesus Cristo!! Me mande Dona Isabel!
No mesmo
instante, viu surgir um cavaleiro feito de luz, que atravessou bem na sua
frente. Corisco ficou imóvel e em silêncio, enquanto a pintada fugia em
disparada, rumo à serra. Guará, então, pulou da sela, sem saber o motivo. A
visão já havia se desfeito.
O peão
tirou o chapéu, se ajoelhou e, mesmo sem saber, tentou fazer o sinal da cruz.
De volta
à sela, pouco mais à frente avistou Malhada e sua cria. Já começavam a cair
grossos pingos de chuva e o céu era riscado por relâmpagos intermitentes e os
trovões pareciam sacudir a terra.
Guará
pegou a bezerrinha, a envolveu em sua capa de peão e seguiu os passos lentos
rumo ao curral, acompanhado da Malhada.
Chegando
debaixo de pesado temporal, colocou a mãe e a cria no galpão e entrou na
varanda, procurando pela patrão.
Tonico
Leme, mesmo sem entender a urgência, foi logo perguntando:
- O que é
isso, peão? Vá tirar essa roupa molhada!
Ao que
Guará respondeu, tirando o chapéu:
- Patrão,
por Nosso Senhor Jesus Cristo! Eu preciso lhe contar o vi há pouco lá na
porteira velha!
Oooooooo0000000ooooooooO