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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A MALHADA


Este texto, extraído do livro "O Sertanejo", de José de Alencar, foi uma de minhas fontes inspiradoras relativos a nossa selva, mato, cerrado, caatinga, etc., com as quais sonhava um dia caminhar mato a dentro. Hoje resolvi postar aqui e desejar a vocês boa leitura, imaginando como um dos maiores escritores brasileiros enxergava a vida do sertanejo, desse nosso Brasil, cujas matas e seus habitantes selvagens hoje passam por um perigo existencial muito grande.




Extraído de O Sertanejo, de José de Alencar
Fonte: ALENCAR, José de. O sertanejo. 5. ed. São Paulo : Melhoramentos, [19--].
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Gleidy Lima Milani – Londrina/PR


VI – A malhada
Nos últimos ramos, lá no tope do jacarandá, havia o sertanejo armado a rede, em que se
embalava.
Devia de achar-se mais de cem pés acima da terra; e nessa grande altura, suspenso por duas
finas cordas de algodão trançado, estava mais tranquilo do que se pousasse no chão, onde o
poderiam incomodar a má companhia dos répteis e a visita de alguma fera.
Alí, em seu pavilhão de verdura, grimpado nos ares, não tinha outros vizinhos além de uma
jurití, que fabricara o ninho no próximo galho, e acabava de ruflar as asas à sua chegada para darlhe
a boa-noite.
Através do rendilhado da folhagem, como por entre os bambolins de fina escócia de uma
recêmera, o sertanejo recostado no punho da rede, que oscilava ao frouxo balanço, descortinava
toda a devesa que se estendia das encostas da serra pelos tabuleiros, até onde a vista alcançava.
A meia distância ficavam as casas da fazenda, que êle via de alto como um mapa
desenhado na superfície da terra.
Neste momento o pátio interior se iluminava de muitos fachos. Ao clarão que fazia,
Arnaldo reclinado para ver melhor, avistou gente a mover-se e divisou o airoso vulto de D. Flor.
Transportava-se o capitão-mór à capela com sua família para assistir ao têrço, e todo o
povo da fazenda concorria à devoção que nessa noite de chegada tinha uma intenção especial e
solenidade maior que de costume.
Cessaram os repiques do sino; o sertanejo adivinhando que estavam na reza ajoelhou
também num ramo da árvore, e com sincero fervor acompanhou de longe no seu nicho agreste a
oração que lá se estava elevando ao Senhor pela boa volta e feliz chegada dos donos da Oiticica.
Começou a ladainha cantada.
O côro religioso, derramando-se pela floresta, impregnava-se dos ruídos e murmúrios da
ramagem aflada pela brisa, o que lhe dava um timbre grave e sombroso.
Ainda que não se eximisse de todo ao místico sentimento de que se repassava essa
melopéia cristã no seio da profunda solidão, o sentido do mancebo estava especialmente
concentrado no esfôrço de abstrair do côro uma voz, para escutá-la, a ela somente.
Ou porque em verdade sua residência errante e aventureira no deserto lhe houvesse
exercido as faculdades ao mais alto grau, dando-lhe admirável fôrça de percepção; ou porque se
deixasse enlevar de uma grata ilusão, o certo é que Arnaldo distinguia naquele concêrto uníssono
uma melodia radiante, de uma límpida suavidade, que entretecia o canto sonoro como fio de ouro
urdido em tela de sêda.
De princípio o ouvido do sertanejo experimentou a mesma sensação dos olhos quando os
fere a luz: houve uma fascinação que não lhe deixava discernir as vozes, mas logo após começou a
destacar o timbre mavioso de D. Flor, com tamanho vigor que já não escutava êle senão êsse hino
celeste, surdo para toda outra cantoria.
Terminou o têrço; sumiu-se o clarão dos fachos; naturalmente a família passava à mesa da
ceia. Pouco depois apagaram-se os fogos e apenas ficou por algum tempo a lâmpada da casa de
jantar, que era costume deixar até de todo concluir-se a tarefa diária.
Enquanto broxoleou ao longe, no seio das trevas, a luz solitária, Arnaldo esteve
embevecido a contemplá-la, como se a trêmula irradiação lhe desenhasse formoso painel.
Era assim todas as noites em que malhava alí, na sua pousada, quando as correrias da vida
errática do sertanejo não o levavam pelo mundo sem destino.
Essa luminária, êle a amava como sua estrêla. As almas que vivem no campo, ao relento,
sob um firmamento cravejado das mais brilhantes constelações, todas têm um astro de sua particular
devoção, um amigo no céu com quem se entretêm e conversam nos serões das noites ermas.
Para Arnaldo todas essas meigas virgens do céu lhe eram irmãs; conhecia-as pela
cintilação, como se conhece pelos olhos a menina faceira que se embuçou na sua mantilha azul. A
cada uma saudava pelo nome, não o que inventaram os sábios, e sim o que lhe dera sua fantasia de
filho do deserto.
Mas esquecia-as o ingrato, quando brilhava a outra, a estrêla da terra, porque esta lhe
falava de D. Flor e seus raios eram como os olhos castos da formosa donzela que vinham
misteriosamente, no segrêdo da noite, afagar-lhe os seios d’alma.
Afinal também apagou-se a luz.
Recostara-se o sertanejo outra vez à rede, quando a ramagem cascalhou perto e os galhos
do jacarandá estremeceram abalados por alguma forte percussão.
Arnaldo pôs a cabeça fora da rede, e perscrutando a folhagem descobriu duas tochas acesas
no meio das trevas, mas de uma luz baça e sulfúrea.
Os mais intrépidos caçadores do sertão, curtidos para todo o perigo, não se podem eximir
de um súbito arrepio, quando lhes chamejam no escuro da mata êsses olhos vidrentos cujos lumes
gáseos fervilham dentro n’alma.
Há um quer que seja de satânico na pupila da onça, como na de toda a raça felina; e é por
essa afinidade que nas antigas lendas o príncipe das trevas aparece mais frequentemente sob a figura
de um gato negro, miniatura do tigre.
Daí provém talvez o supersticioso terror que inspira a fosforescência dêsses olhos ao mais
valente sertanejo, o temor ao que jamais pestanejou em face da morte, e nem se abala com o
medonho rugido da fera.
Não produziram, porém, igual efeito em Arnaldo as duas tochas que brilhavam entre o
negrume da noite, alguns pés abaixo do lugar onde se achava:
— Bem aparecido, camarada, disse o mancebo a gracejar.
A onça espasmou a cauda rebatendo as ancas, e dentre as belfas túmidas escapou-lhe um
rosnar manso e crebro como rir de contentamento.
— Sim, senhor, entendo. Quer saber como cheguei? Bom, para o servir, muito obrigado. E
o amigo, como lhe foi por cá êstes tempos que não nos vimos? A sêca tem sido grande, e os garrotes
estão pela espinha, não é assim? Paciência, meu rico, aí vem o inverno e com êle reses gordas e
carniça à farta. A chuva não tarda; esta manhã vi passar o tesoureiro.
Entanto o tigre continuava a grunhir o seu riso de fera com uns agachos de rafeiro, que lhes
espreguiçavam o torso mosqueado.
— E da dona, que novas me dá? continuou o sertanejo no mesmo desenfado. Está
guardando a casa? E o senhor anda ao monte? Pois boa caça, amigo, e cortejos à sua dama.
Com esta despedida Arnaldo, que se debruçara ao punho da rede para conversar com a
onça, recolheu o corpo, disposto a acomodar-se.
Levantou-se, porém, um rumor de garranchos que estalavam. Era a onça que saltara a um
galho superior, com ímpetos de galgar o cimo da árvore; mas hesitava, receosa de que os ramos
altos e menos válidos se partissem com o pêso de seu corpo e o choque do arremêsso.
— Nada, camarada, dispenso as suas ternuras por esta noite. Cheguei da viagem e estou
cansado. Pode continuar seu passeio. Boa-noite.
E o sertanejo, alongando a perna, enxotou a importuna com um pontapé atirado ao tufo da
folhagem que ficava por debaixo da rede.
Aquietou-se a onça e o rapaz deitou-se mui sossegado, sem mais importar-se com a
presença do terrível hóspede, que lhe estava a uma braça de distância. Êste curto espaço, porém, a
fera não ousava transpô-lo com receio de precipitar-se.
Os sertanejos escoteiros que ainda agora em jornada na Bahia ou Pernambuco, sem outro
companheiro mais do que seu cavalo, percorrem aquelas solidões, também por mim viajadas outrora
ainda no alvorecer da existência; êsses destemidos roteadores do deserto costumam pernoitar na
grimpa das árvores, onde armam a rede e aí ficam ao abrigo das onças que não podem trepar pelos
troncos delgados, nem pinchar-se à frágil galhada.
Não somente por esta razão estava Arnaldo seguro de si, mas também pela confiança em
sua superioridade, já mais de uma vez provada pela fera. Assim, pois, esqueceu-se dela, para
engolfar-se de novo nas cismas que lhe estavam afagando a mente.
Nesse ênlevo d’alma, a fantasia arrebata-o com a pujança que ela costuma adquirir nos
ermos, em comunicação com o infinito que a envolve e a concebe no seio imenso que se chama a
natureza. Compreendem-se os êxtases dos anacoretas nas solidões da Tebaida. Como não se
exaltarem ao céu, essas almas tão desprendidas da humanidade, que desparzem nos ares a fragrância
de sua flor?
O corpo de Arnaldo estava alí; mas seu pensamento discorria além, e nesse instante revia
D. Flor, melhor do que se a tivesse diante dos olhos; pois não lhe embacia a sua límpida visão o
deslumbre que a presença da gentil donzela causava-lhe sempre, depois de certa época.
A moça caminhava diante dele com o passo airoso e modulado que era dela e só dela, pois
nunca o mancebo vira outra mulher andar assim. Quando êle caçava lá para as bandas da Junça,
demorava-se a ver as garças reais passeando pelas margens da lagoa, porque elas tinham o pisar
altivo e sereno de D. Flor.
Vagueava a menina pelo campo, arfando-lhe docemente o talhe grácil com a ondulação da
marcha; e êle, Arnaldo, a seguia, respirando-a com a aragem que agitava-lhe os folhos do vestido, e
que folgava nos crespos dos cabelos castanhos.
Êsses cabelos eram os seus enlevos. Quando a menina sentia-se fatigada, reclinava ao
ombro dele, que, então criança como ela, a carregava e sentia as tranças macias e perfumadas
cobrirem-lhe o rosto acariciando-o como as asas de um rôla.
Neste ponto de seu meigo sonho, o mancebo inclinava a fronte sôbre uma touça da
ramagem e roçava timidamente o rosto pelas fôlhas, anediando-as com a mão, na cisma de serem as
madeixas, que tanto amava. Puerilidades do coração, sempre menino, ainda sob as cãs do ancião.
Se a brisa vinha bafejar-lhe as faces, impregnada da fragância dos campos, êle entreabria
os lábios para beber-lhe as emanações, que se afiguravam à sua imaginação o hálito perfumado de
D. Flor, ao voltar-se para falar-lhe.
Se a jurití arrulhava no ninho, respondia-lhe Arnaldo docemente, com um quérulo gorjeio.
A rôla arrufava-se de prazer escutando os ternos requebros que lembravam-lhe a companheira. E êle
cuidava-se a conversar com a menina, e a responder-lhe às perguntas curiosas.
Êstes sonhos de todas as noites alí passadas ao relento eram talvez recordos, em que sua
alma se revivia no passado, e que a esperança entrelaçava de fagueiras ilusões.
No meio dos devaneios que lhe embalavam a mente, o sertanejo adormeceu.
A onça que se agachara entre a ramagem, desenganada da espera, esgueirou-se pelo mato,
e foi-se ao faro de alguma novilha desgarrada.

2 comentários:

  1. Belo texto Tulio, grato por compartilhar.

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  2. Obrigado, Marcio! Tenho alguns muito bons mesmo. Mas preciso de autorização para posta-los.
    Aguarde.
    Abração.

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